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Fámilia ilustrada em Vidas Secas.

Fámilia ilustrada em Vidas Secas.
Uma ilustração feita por Vinícius Mattoso retratando uma fámilia em vidas secas seguindo abaixo com assinatura de Graciliano R. (Autor do livro).

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Análise e Contextualização

Na ótica do subdesenvolvimento social e econômico brasileiro, especialmente, na década de 30 do século passado, onde toda esta realidade perversa passou a ser narrada, Vidas Secas deve ser contextualizada, na medida em que, às escâncaras, abandona então a amenidade e curiosidade, bem como o que havia de mascaramento no encanto do pitoresco ou no enfoque ornamental com que antes se tratava o homem rústico brasileiro face ao regionalismo do século XIX.

Para entender-se a ruptura de Vidas Secas com a plenitude das tradições da ficção regionalista brasileira, se tem de retroceder as origens do regionalismo e a construção de uma tradição literária no Brasil.

Ao contrário dos paises da Europa onde a cultura é secular, pelo que a tradição vem sendo construída a milênios, o Brasil é um pais jovem.
Na época colonial o Brasil não possuía escolas, os filhos dos mais abastados dirigiam-se para a Europa, onde mantinham contato com a cultura e literatura do velho continente.

Quando retornavam traziam as tradições desta cultura e literatura, aplicavam-na, mas ficava algo de muito artificial, especialmente, durante o parnasianismo, pois este movimento caracterizado como um retorno ao passado, restava excêntrico, singular, estranho quanto aos seus resultados, pois não havia como se tornar para algo que nunca existiu, sem embargos de que a mitologia grega não detinha nexo cultural com o país nesta época do neoclassicismo.

A busca das raízes, ou seja, das origens brasileiras levou a literatura para a figura do índio, visando estabelecer um passado heróico e lendário à nossa civilização, bem como dos habitantes dos sertões e regiões distantes da Corte.

Neste ambiente nacionalista desenvolveu-se uma literatura com enfoque indianista, histórico e regionalista, destacando-se dentro desta última linha José de Alencar, Visconde de Taunay dentre outros, começando a surgir desde então uma tradição regionalista, dentro da grande tradição literária, propriamente, brasileira que começou a ser erigida a partir do romantismo.

Nesta construção o eixo do romance do século XIX foi o respeito a realidade, manifesto pela verossimilhança na narrativa.

Para tanto se encaminhou para descrição e o estudo das relações humanas em sociedade, lugares, paisagens, cenas, épocas, acontecimentos, personagens-padrão, tipos sociais, convenções, usos e costumes do país, criando assim uma tradição literária de mostrar o Brasil, ou seja, ampliar a visão da terra e do homem brasileiro.

Para atingir este escopo no dizer de Antonio Cândido, “dentre os temas brasileiros impostos pelo nacionalismo tenderiam a ser mais reputado os aspectos de sabor exótico para o homem da cidade a cujo ângulo de visão se ajustava o romancista: primitivos habitantes em estado de isolamento ou na fase dos contactos com o branco; habitantes rústicos, mais ou menos isolados da influência européia direta. Daí as duas direções: indianismo, regionalismo.” (Formação da Literatura Brasileira, Um instrumento de descoberta e interpretação, Martins, p. 115)

Para atingir este escopo no dizer de Antonio Cândido, “dentre os temas brasileiros impostos pelo nacionalismo tenderiam a ser mais reputado os aspectos de sabor exótico para o homem da cidade a cujo ângulo de visão se ajustava o romancista: primitivos habitantes em estado de isolamento ou na fase dos contactos com o branco; habitantes rústicos, mais ou menos isolados da influência européia direta. Daí as duas direções: indianismo, regionalismo.” (Formação da Literatura Brasileira, Um instrumento de descoberta e interpretação, Martins, p. 115)

De toda sorte, quedou-se firmada uma tradição na literatura brasileira no século XIX, com o advento do Modernismo, especialmente, em face da Semana de Arte Moderna de 22, houveram algumas rupturas, especificamente, na “prosa de ficção encaminhada para o “realismo bruto”.....beneficiando-se amplamente da “descida” à linguagem oral, aos brasileirismos e regionalismos léxicos e sintáticos. (Alfredo Bossi, História Concisa da Literatura Brasileira, Editora Cultrix, SP, p. 433/434)

Assim, na década de 30, “o panorama literário apresentava em primeiro plano, a ficção regionalista, o ensaísmo social”....” A sua paisagem nos é familiar: O Nordeste decadente, as agruras das classes médias no começo da fase urbanizadora, os conflitos internos da burguesia provinciana e cosmopolita”. (Alfredo Bossi, j. c., p. 434/435)

Neste campo, não havia outra saída, condicionando estava um novo estilo ficcional marcado pela rudeza, pela mostragem direta, crua e nua, dos fatos, abrindo caminho enfim para a retomada do realismo, entretanto, não o impessoal e cientifico do século XIX, mas sim, preferiram os romancistas de 30, “uma visão crítica das relações sociais” (Alfredo Bossi, j.c., p.438)

Neste panorama, se faz a contextualização de Vidas Secas no quadro da literatura de 30, vez que, a obra com as matizes do regionalismo, faz um retrato real, cruel e brutal das relações sociais, nitidamente, feudais imperantes no Nordeste do Brasil na época, servindo para demonstrar de forma violenta, com traços do realismo, que aqueles fatos embora até aceitos pela sociedade local, causavam graves lesões ao tecido da pessoa humana, por isto há menos tipos, espaços e condições exóticas, todas inerentes e exigidas pela tradição regionalista do século XIX, que assim, ganha novos contornos, onde a realidade sócio-econômica, também passa a ter grande e quiçá maior relevo.

Por tais motivos, Vidas secas é uma obra pela sua formação e conteúdo singular na literatura, embora faça uma análise das condições sociais do Nordeste do Brasil o que é inerente ao contexto da literatura da época.

Graciliano Ramos penetra no pensamento, na carne e na alma de cada um dos membros da família de Fabiano, visando mostrar de forma brutal a discriminação, a cultura e a realidade do sertanejo nordestino.

Partindo desta premissa básica, cumpre destacar, primazmente, que o foco narrativo em Vida Secas é feito em terceira pessoa, mas um tanto singular, pois por vezes o narrador se apresenta como sendo o inconsciente da personagem, outras vezes como onisciente, apresentando-se assim, como um terceiro que conta a história, como um deus que sabe de tudo e de todos.

Este flutuar, entre o inconsciente e a narrativa de uma história por um terceiro, onde o narrador desenvolve o seu mister, é bem claro e visa com isto o “sentido da vida”, que “é o centro em torno do qual se movimenta o romance”. (O marrador, Walter Benjamim, Obras Escolhidas, SP, Brasiliense, 1985, v. 1, p.212).

O “sentido da vida” ou os porquês de tantas desgraças são os temas pelos quais tudo de desenrola, alias o próprio título da obra endossa esta tese, vez que seca, na linguagem popular, segundo o Aurélio, tem o significado de “má sorte” ou azar, portanto Vidas Secas tem a inteligência de Vidas sem sorte, o que reporta à razão e ao sentido desta existência desafortunada.

Este procurar incessante se apresenta, claramente, no título em que Fabiano procura por uma raposa. Apesar do fracasso da empreitada, ele está satisfeito. Pensa na situação da família, errante, passando fome, quando da chegada àquela fazenda. Estavam bem agora. Fabiano se orgulha de vencer as dificuldades tal qual um bicho. Agora ele era um vaqueiro, apesar de não ter um lugar próprio para morar. A fazenda aparentemente abandonada tinha um dono, que logo aparecera e reclamara a posse do local. A solução foi ficar por ali mesmo, servindo ao patrão, tomando conta do local. Na verdade, era uma situação triste, típica de quem não tem nada e vive errante. Sentiu-se novamente um animal, agora com uma conotação negativa. Pouco falava, admirava e tentava imitar a fala difícil das pessoas da cidade. Era um bicho.

A obra inteira se desenrola pela falta de resposta a esta pergunta de Fabiano e sua família, qual era a razão da vida deles ? Não havia motivo para tanta desgraça, mas a narrativa dá a resposta de forma irônica, eram todos bichos.

Esta é a razão do caráter humano que o narrador dá a cadela Baleia.

Observe-se que a cadela Baleia, como bicho tinha as mesmas reações e até a habitual visão de submissão e resignação em face ao mundo dos demais membros da família, na verdade agia e tinha as mesmas atitudes deles, na medida que era apenas mais um membro.

Assim, o narrador desenvolve o conflito entre a Baleia humanizada e a família de Fabiano animalizada. Nivela todos como animais.

Outra característica marcante é a falta de dialogo entre os membros da família, o narrador substitui os diálogos, por pensamentos, pensamentos estes em que ele ocupa o lugar do personagem, seja ele humano ou animal, mesmo assim, se utiliza de expressões regionais, adequando-os à sintaxe tradicional. A ausência de diálogos se faz presente devido à uma ausência vocabular por parte das personagens, que se comunicam através de onomatopéias, exclamações, resmungos e gestos, enfatizando a animalização dos personagens e a solidão, marcante da vida de todos os membros da família, que são marginalizados também pelo fator lingüístico Assim, há a predominância do discurso indireto livre ou através de monólogos interiores, onde o narrador ordena logicamente os discursos e pensamentos dos personagens.

Deste modo, foi resolvido o gargalo literário do nível de linguagem, pois a tradição do regionalismo dá um tom caricatural à linguagem culta de um pretenso personagem que por sua condição jamais poderia possuir.

Neste particular, não se pode deixar passar “in albis”, que foi magistral Graciliano Ramos. Vidas Secas é uma obra do gênero regionalista e isto é irrefutável, como tal, descreve uma realidade social e um espaço tipicamente Nordestino na forma da tradição, inclusive com uso de nomes e termos regionais. Assim seria natural que o narrador tendesse a oralidade e o personagem a elevações estilísticas, mas ele restou flutuando entre a voz da consciência e do pensamento do personagem, o discurso indireto ou a narrativa como testemunha dos fatos, elidindo-se a possibilidade da fala, ou dialogo dos personagens, deixando-a a nível mínimo, por regra, monossílabos. Deste modo o efeito da linguagem regional tendeu a desaparecer sem com isto perder a sua verossimilhança.

Em outro ponto, a tendência do regionalismo da década de 30, no sentido de um realismo brutal, uma verossimilhança cruel, foi seguida na construção das personagens de Vida Secas. Fabiano foi construído e se constituiu como um personagem padrão de um camponês Nordestino, ou seja, concebido a luz de um modelo real e publicamente conhecido, ou seja, ignorante, resignado externamente, mas que intimamente lutava contra as desigualdades, tanto que sua luta sempre restava “resolvida” pelo único meio permitido pelo sistema, que era a fuga. O mesmo se operando de Sinhá Vitória e dos dois meninos.

Como uma das funções capitais da ficção “é a de nos dar um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento decepcionante e fragmentário que temos dos seres” (Candido, Antonio, A personagem da Ficção, 2ª Ed, SP, Perspectiva, 1972, p. 64), em Vida Secas, as personagens são sumariamente apresentadas.

Sob o aspecto físico nada se tem de Sinhá Vitória e dos dois meninos, sabe-se apenas que o sonho dela é ter uma cama de varas; quanto a Fabiano, tente-se apenas descrição sumária de ter barba ruiva e castigada pelo sol, mãos calejadas e grossas, pés duros, mostrando assim, um tipo exemplar de pessoa castigada pela rudeza da vida.

Tais descrições sumárias são relevantes, pois não fragmentam, mas reforçam a imagem brutal em palavras do personagem. A expansão em imagem de Fabiano é realçada pela falta de sobre-nome. Como um “cabra” nem nome de família possuía. Não falava, pois achava que sequer sabia. Possuía poucos objetos rudimentares, como alpercatas que lhe cortavam os pés.

Dos meninos, também, sequer apresentações, nomes e descrições ou traços se possui, exceto que o mais novo admirava o pai e o mais velho tinha natural curiosidade juvenil.

Na verdade, no contexto que os personagens se apresentam maiores traços do que se tem, seria desnecessários pois os membros da família de Fabiano são alegorias, entendendo-se como tal, meros símbolos típicos do sertanejo nordestino, que é impotente frente a natureza, a tradição social e econômica da região que lhe é cruel, bem como é ignorante e resignado aparentemente diante de sua realidade.

Destarte, embora a realidade do sertão Nordestino brasileiro seja cruel e dolorosa, a imagem da família sobejou por exotismo, pois é algo incomum para o restante do país, a situação e a vida do sertanejo nordestino, no espaço, Graciliano não se distanciou da tradição regionalista, contou a região do árido Nordestino, as suas plantas regionais, como no caso o mandacaru. A descrição deste ambiente, embora superficial, mas com realce nestes símbolos regionais, foi também uma nítida procura por um exótico, que sempre acaba chamando a atenção para o que é no geral esquisito ou extravagante.

Por outro lado, Vidas Secas, pode-se dizer num esforço discursivo, praticamente, não tem uma história a contar, mas um conjunto de situações confluentes, mas entre si, autônomas.

Foster define “a estória como uma narrativa de acontecimentos dispostos em sua seqüência no tempo. Um enredo é também uma narrativa de acontecimentos cuja ênfase recai sobre a causalidade.” ou seja, enredo é um conjunto dos fatos encadeados no tempo que constituem a ação de uma obra de ficção, mas cuja ênfase está na causa e não no efeito. (E. M. Foster, Aspectos do Romance, Editora Globo, Porto Alegre, 2ª Edição, p. 69).

Os capítulos de Vidas Secas, em sua maioria, não revelam precisamente um enredo, mas sim, um conjunto de painéis, cuja ordem seria irrelevante, pois são autônomos.

É bom observar, que com exceção do primeiro e último capitulo da obra, as supressões ou modificações de ordem não acarretariam modificações do conteúdo, e mais, o primeiro e último capítulos dão um efeito cíclico, ou seja, a vida desafortunada não termina nunca é um destino inevitável.


De fato, Vidas Secas trata a história de uma família de retirantes, que fugindo da seca, chega a uma fazenda abandonada, isto se apura no primeiro capitulo, a partir de então durante um breve período de chuvas, eles ficam na fazenda, até que se revela no último capitulo, o que sempre foi esperado, uma nova estiagem acontece e eles são obrigados, como no início, a fugir, agora sonhando com vida melhor no sul do Brasil.

Portanto a causa é a seca, todas as demais histórias são efeitos dela, portanto na história contada no primeiro e último capítulo de Vidas Secas há um enredo, ou seja, um conjunto dos fatos encadeados no tempo que constituem a ação de uma obra, mas cuja ênfase está na causa que é a seca, mas nos demais não, tanto que podem ser suprimidos ou ter sua ordem modificada.

Consolidando todas as explanações anteriores, do cotejo entre os capítulos “mudanças” e “fuga”, como já vinha sendo feito, primeiro e último, constata-se pelo contraste, que em ambos salienta o enredo que é a seca, a tragédia nordestina da seca; onde o ser humano se degrada ao nível de animal, chegando a ponto de se confundir com ele. Os personagens são verdadeiros símbolos do sertanejo típico do árido Nordestino, que não conseguem mudar desta figura símbolo do analfabeto, explorado, sujo, castigado pelo sol e que tem assim, sua vida dirigida pelos caprichos da natureza, pelo ciclo das chuvas e secas que desenham o seu destino. O espaço é exótico, sobressaindo na paisagem juazeiros e caatingas, incomuns para o resto este continental território brasileiro. A narrativa sempre é feita em terceira pessoa, mas há predominância do discurso indireto livre, monólogos interiores ou reflexões de pensamento, onde o narrador resta como onisciente ou quiçá como testemunha.

Por ultimar, complementando o paralelo ainda dos capítulos retro, como mão à luva, luzidia quanto aos demais elementos constitutivos, a inteligência de Carlos Nelson Coutinho, quanto trata da questão do subdesenvolvimento e Marxismo, para quem, Vidas Secas, corresponde “a esta realidade relativamente simples e pouco densa, apresenta-se também simples: ao invés dos longos desdobramentos que caracterizam o romance realista do período de formação e ascensão da burguesia, temos aqui uma realidade quase linear sem conflitos dramáticos intensos e restrita a um curto período temporal na vida de uma família de retirantes. Tangidos pela seca, Fabiano e os seus emigram em busca de uma região mais favorável: terminam por se fixar em uma fazenda abandonada na qual Fabiano passa a trabalhar após entrar em acordo com o patrão, sempre ausente e distante, com a volta da seca eles são novamente obrigados a abandonar a fazenda e retornar a emigração. O romance situa a ação entre estas duas secas, isto é, no período do estabelecimento provisório de Fabiano. A profundidade de Graciliano, entre outras coisas, revela-se no fato de que --- este curto período de tempo e neste limitado espaço --- tenha ele aflorado e reproduzido a totalidade dos problemas implícitos no desdobramento da ação, sem necessidade de recorrer a largos panoramas e ações paralelas, o que não corresponderia ao baixo nível psicológico dos personagens, nem à pouco densa realidade na qual eles atuam.” (Coutinho, Carlos Nilson, Literatura e Humanismo, Ensaio de Critica Marxista, Paz e Terra, ps. 172/173). (n.g)